Revista Poetizando

26.6.10

POETIZANDO Nº 37
(Edição de Inverno)

PIJAMA DE FLANELA

A Mario Quintana,
mestre, régua e compasso.


Os mormaços fazem tranças de cãs nas tardes.
Mirar-se nas poças de barro é nada.
Indelével é o rosto moreno de louça,
Da moça louca que galopa nos cirros.

As lareiras arrefecem as causas do frio
E ardem em sua combustão as toras e taras
Do que foi sombra.
As mantas pertencem e só cabem nas noites,
Na tez rósea, no jogo do gelo do ar insone.

A lã baliza o tremor primeiro,
O tato cálido e impune da camurça dos corpos;
As bocas roucas e mornas,
Saciam os afãs urgentes de hortelã.

Súbitas,
Fundem e sorvem
A cidreira das horas,
Enquanto trás os vidros embaçados,
Na varanda de chuva,
O inverno,
Na alva cadeira de balanço,
Escorre nas calhas
O denso licor do infinito.

MARCELO J. FERNANDES
in: Argila nº 14
Petrópolis/RJ
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AUTORES DO MÊS

JUNHO

LUÍS GONZAGA PINTO DA GAMA, jornalista e poeta brasileiro, nasceu em Salvador/BA a 21 de junho de 1830 e faleceu em São Paulo/SP a 24 de agosto de 1882. Filho de fidalgo português e de Luísa Mahin, preta africana liberta, foi vendido pelo pai aos dez anos, como escravo em 1840, para saldar dívidas de jogo. Comprado em leilão pelo alferes Antonio Pereira Cardoso, passou a viver em cativeiro em Lorena/ SP. Em 1847 foi alfabetizado por Antonio Rodrigues do Prado Júnior, hóspede de Antonio Pereira Cardoso. No ano seguinte, fugiu da fazenda para São Paulo. Depois de obter a liberdade, entrou para o Exército, mas em 1854 foi demitido por insubordinação. Trabalhou na secretaria de polícia e foi estudante de Direito, onde foi demitido do emprego “a bem do serviço público”, porque auxiliava as alforrias e ajudava as pessoas livres que permaneciam escravizadas. Trabalhou como copista de cartório, amanuense, gráfico, revisor e redator do ‘Ypiranga’, formou-se em direito e adquiriu grande reputação, em São Paulo, como advogado - conseguiu a liberdade de mais de 500 escravos - e como orador do Clube Radical Paulistano, de cujo órgão, o ‘Radical Paulistano’, foi redator. Foi perseguido, não concluindo os estudos. Sempre utilizou seu trabalho na imprensa para a divulgação de suas idéias antiescravistas e republicanas. Os poemas de Luís Gama estão vinculados à segunda geração do Romantismo. Obra: Trovas Burlescas de Getulino (1859).

MINHA MÃE (fragmento)

Era mui bela e formosa,
Era a mais linda pretinha,
Da adusta Líbia rainha,
E no Brasil pobre escrava!
Oh, que saudades que tenho
Dos seus mimosos carinhos.
Quando c'os tenros filhinhos
Ela sorrindo brincava.
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JULHO

JOÃO ANTÔNIO DE AZEVEDO CRUZ, poeta, teatrólogo, jornalista, advogado brasileiro, nasceu em Santa Rita da Lagoa de Cima, município de Campos/RJ em 22 de julho de 1870 e faleceu em Nova Friburgo/RJ em 22 de janeiro de 1905. Foi grande admirador de Cruz e Sousa, liderando o movimento simbolista em Campos. Em algumas obras usou o pseudônimo de Nobre Valesco. A Academia Campista de Letras publicou uma seleção de seus poemas sob o título de Sonhos (1943). Obra: Profissão de Fé (1901).

MINHA SENHORA, O AMOR

Degenerou, por fim, numa palavra falsa,
e hoje já não é mais uma alucinação;
tudo o que doura e o veste e o transfigura e o realça
da fantasia vem, nunca do coração!

É uma frase feliz no delírio da valsa,
uma chama no olhar, um aperto de mão. . .
Um capricho, uma flor, uma luva descalça
que alguém deixou cair e que se ergue do chão!

Disse-lhe isto e esperei. Um silêncio aflitivo,
longo e soturno como os torvos pesadelos,
pairou no espaço como um ponto sobre um i!

Dormi; quando acordei vi-me enterrado vivo,
dentro da noite má dos seus negros cabelos,
em cuja cerração quase que me perdi! . . .
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AGOSTO

BERNARDO JOAQUIM DA SILVA GUIMARÃES, poeta e romancista brasileiro, nasceu a 15 de agosto de 1825 em Ouro Preto/MG e lá faleceu a 10 de março de 1884. Foi grande amigo de Álvares de Azevedo e Aureliano Lessa. Tornou-se juiz municipal de Catalão, em Goiás e professor de retórica e poética no Liceu Mineiro de Ouro Preto. Casou-se com Teresa Maria Gomes, tendo posteriormente, oito filhos. Uma das duas filhas foi Constança, falecida aos 17 anos, quando noiva de seu primo, o poeta Alphonsus de Guimaraens, que a imortalizou na literatura. Em 1875, publicou o romance que melhor o situaria na campanha abolicionista e viria a ser a mais popular das suas obras: A Escrava Isaura. Dedicando-se inteiramente à literatura, escreveu ainda quatro romances e mais duas coletâneas de versos. Foi o principal representante do romance histórico romântico no Brasil. Patrono da cadeira nº 5 da Academia Brasileira de Letras.
Algumas Obras: Cantos da Solidão (1852), Poesias (1865), O Ermitão de Muquém (1869), Lendas e Romances (1871), A Escrava Isaura (1875).

REGRESSO AO LAR (fragmentos)

Ai, há quantos anos que eu parti chorando
Deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?... Há trinta? Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me estás fitando,
Canta-me cantigas para me lembrar!
(...)
Trago d'amargura o coração desfeito...
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!...
Minha velha ama que me deste o peito,
Canta-me cantigas para me embalar!
(...)
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FÁBULA

A fábula é uma narrativa curta que traz implicitamente um julgamento moral e uma estrutura dramática em que se fundamentam. Os protagonistas são animais irracionais cujo comportamento deixa transparecer uma alusão, satírica ou pedagógica, aos seres humanos. Cultivada em versos na Antiguidade clássica por Esopo, escravo grego do século VI a.C., e por Fedro, escritor latino do século I da era cristã, continuou depois que La Fontaine, em livros publicados entre 1668 e 1694, deu a essa forma literária a grandeza devida. No pensamento de Aristóteles, o termo “fábula” designava a “imitação dos atos”, ou seja, a intriga, e era “o primeiro e mais importante” elemento da tragédia. No século XIX, as fábulas em seu sentido lato já chegaram em prosa, deixando para trás os versos como veículo de expressão. Em língua portuguesa, provavelmente, alcançaram o seu grau de maior transcendência com Almeida Garrett (1799-1854) em Fábulas e Contos, de 1853. Na literatura brasileira temos autores como Machado de Assis (1839-1908).

O LEÃO E O RATINHO

(fábula de Esopo)

Um leão, cansado de tanto caçar, dormia espichado debaixo da sombra de uma boa árvore. Vieram uns ratinhos passear em cima dele e ele acordou. Todos conseguiram fugir, menos um, que o leão prendeu debaixo da pata.

Tanto o ratinho pediu e implorou, que o leão desistiu de esmagá-lo e deixou que fosse embora. Algum tempo depois o leão ficou preso na rede de uns caçadores.

Não conseguindo se soltar, fazia a floresta inteira tremer com seus urros de raiva. Nisso apareceu o ratinho e com seus dentes afiados roeu as cordas e soltou o leão.

Moral: Uma boa ação ganha outra.
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HERMANOS

MACHADO D’ASSIS

Dulce anciano que vi, en su Brasil de fuego

y de vida y de amor, todo modestia y gracia.

Moreno que de la India tuvo su aristocracia;

aspecto mandarino, lengua de sabio griego.

Acepta este recuerdo de quien oyó una tarde

en tu divino Río tu palavra salubre,

dando al orgullo todos los harapos en que arde,

y a la envidia ruin lo que apenas la cubre.

(Rio de Janeiro, 1906.)

RUBÉN DARÍO

(1867–1916)

Poeta Nicaragüense
in: Del Chorro de La Fuente

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MULHER


VEM!

Vem! Que t' importa que maldiga o mundo
O amor profundo que nos liga? vem;
Vem, que nos vales de cheirosas flores,
Nossos amores viçarão também.

Vem! de joelhos nos tapiz de nardo
Há de te o brado suspirar idílios,
Cantar-te a face rosejada em pranto,
O orvalho santo do frouxel dos cílios.

Pensa na sombra da floresta virgem...
Nesta vertigem... nest'amor ali!...
Aves felizes no sendal dos ramos
Seremos: vamos, que o serei por ti!

Vamos unidos como a luz ao astro
O amor da Castro na soidão lembrá-lo,
Nas longas plumas que a palmeira agita
A alma palpita de Virgínia e Paulo.

Que mais tu queres, anjo e flor? Escuta:
Quem ama luta? Não lutemos, vem!
Vamos aos vales de cheirosas flores,
Que é flor d' amores meu amor também.

Olha, de tarde quando o sol se esconde
Diz-me tu onde mais poesia viste?
Calam-se os ventos - só a brisa arrula -
O céu se azula - mas o céu é triste.


Pois bem, o bardo na soidão exprime

Na voz sublime dum arcanjo a voz:
Hei de dos seios arrancar os lírios
Dos meus delírios, pra t'os dar - a sós. –

Perdidos ambos no deserto infinito
Que sonho lindo, que visões também!
E o éter puro como véu d'estrelas...
E a chama delas a tremer além!...

"Mas quando um dia desbotar-se o prado?
Quando o valado se cobrir de gelos?
Ai! tu só vives - beija-flor - de orvalhos
Em verdes galhos de sonhares belos!

Qu' importa o prado de cheirosas flores
Se teus amores morrerão também!"
Quando morrerem, morrerão comigo
E ao céu contigo voarei - Oh! vem!

"Oh! não! Minh'alma se coroa em flores;
Nos esplendores de celeste aurora;
Deus abençoa só amores santos
ala teus cantos: morrerás agora?"

(Rio Grande, julho de 1867)

RITA BARÉM DE MELO

(1840-1868)
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ERÓTICA

OS AMORES (fragmento)

Era intenso o calor, passava do meio dia;

Estava eu em minha cama repousando.

(...) Eis que vem Corina numa túnica ligeira,

Os cabelos lhe ocultando o alvo pescoço;

Assim entrava na alcova a formosa Semiramis,

Dizem, e Laís que amaram tantos homens.

Tirei-lhe a túnica, mas sem empenho de vencer:

Venceu-a, sem mágoa, a sua traição.

Ficou em pé, sem roupa, ali diante de meus olhos.

Em seu corpo não havia um só defeito.

Que ombros e que braços me foi dado ver, tocar!

Os belos seios, que doce comprimi-los!

Que ventre mais polido logo abaixo do peito!

Que primor de ancas, que juvenil a coxa!

Por que pormenorizar? Nada vi não louvável,

E lhe estreitei a nudez contra o meu corpo.

O resto, quem não sabe? Exaustos, repousamos.

Que outros meios-dias me sejam tão prósperos.


OVÍDIO

in: Os Amores

OVÍDIO, poeta latino, nasceu em Sulmona, Abruzes, em 43 a.C e faleceu em Tomi, atual Constança, Romênia, aproximadamente em 17 d.C. Foi considerado mestre da técnica poética. Influenciou Dante, Chaucer, Shakespeare e Milton. Popularizou-se na Idade Média, sendo um dos autores mais lidos.

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POETAS PORTUGUESES


A VIDA

Foi-se-me pouco a pouco amortecendo
a luz que nesta vida me guiava,
olhos fitos na qual até contava
ir os degraus do túmulo descendo.

Em se ela anuviando, em a não vendo,
já se me a luz de tudo anuviava;
despontava ela apenas, despontava
logo em minha alma a luz que ia perdendo.

Alma gémea da minha, e ingénua e pura
como os anjos do céu (se o não sonharam. . .)
quis mostrar-me que o bem bem pouco dura!

Não sei se me voou, se ma levaram;
nem saiba eu nunca a minha desventura
contar aos que inda em vida não choraram. . .


JOÃO DE DEUS

in: Campo de Flores

JOÃO DE DEUS NOGUEIRA RAMOS, nasceu em São Bartolomeu de Messines a 8 de março de 1830 e faleceu em Lisboa a 11 de janeiro de 1896. Advogado, jornalista e professor, foi grande improvisador de versos, tendo como grande admirador Teófilo Braga. Homem simples, despretensioso. Sua obra poética reflete essas características em linguagem original e sem artifícios.
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NOVOS


BALADA NOTURNA

Os latidos dos cães

são rastilho de sons no meio da noite

Pressentem o perigo da ameaça sem rosto

ou seriam ganidos da língua dos aprisionados

nas celas dos portões definitivos?...

Talvez, se os soltássemos marchariam,

lado a lado, sobre as patas mudas da dor comum

lambendo as chagas das suas aflições,

matando a fome da noite a dentro.

Não há mais latidos

só um amargo silêncio

no labirinto dos quintais.

LUIZ ANTÔNIO MARTINS PIMENTA

(1942 – 2004)

Santos/SP
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ENGAIOLADA

O mar, que se inicia onde as casas terminam,

mostra caminhos possíveis

em mundos que desconheço;

a luz caída nas águas,

dos olhos dos holofotes,

faz-me uma festa, com fogos de artifício.

Os pedaços de navios e barcos

emoldurados no fim da rua,

parece que me convidam

a um passeio sem fim,

e fico a cismar alto:

pássaro de asas cortadas,

engaiolada no espaço,

em gaiolas de concreto sobrepostas.

TERESINHA TADEU

(1941 – 2001)
Santos/SP
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A PEDRA

Eu vi um poema sobre a pedra,

Hermosa,

Eu vi.

Esfacelei os dedos em seu infrutífero resgate,

Quebrei pás e picaretas,

Mobilizei exércitos

Pra libertar o poema,

Hermosa.

Translúcido e vago era eu,

E as máquinas que usei de nada serviram,

Hermosa.

Não chores mais,

Não chores mais não chores nunca,

Que além desta pedra encontrarei

Os portões da Casa do Sol,

Onde todos os poemas livres são.

Nós todos, Hermosa,

Por mais que a reneguemos,

Somos esta pedra.

BENILSON TONIOLO
Campos do Jordão/SP
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AFINIDADE

Vou retornar a ti

com palavras impronunciadas.

Elas não estão perdidas,

nem esquecidas.

Estão codificadas.


CARLOS CASSEL
Caçapava do Sul/RS
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Estranha a mim mesma

percorro a linha imaginária

que se avizinha

Mecanicamente um passo após outro...

Tão silenciosa

e sozinha.

REGINA ALONSO

Santos/SP
in: Ofício
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uma pessoa comum sentada num café sou eu

cadeiras na calçada, cabelos ao vento e ao sol

pensamentos livres feito nuvens pelo céu

passos sem pressa, palavras perdidas

histórias entrecortadas, vestígios de vidas

tudo perfeito e bem arrumado

as árvores, o vento, as flores nos vasos

tua espera, tua ausência, tua presença ao sol

nada mais querer senão amar

pois foi assim que tudo começou

como em qualquer outro lugar

à margem sombria destas árvores ao sol

EUNICE MENDES

Santos/SP
in: Cerimônia das Flores

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AMOR

Depois que a vida passou por Judite, o mundo ficou novo. Amor é assim. Seu coração translúcido derramou o conteúdo de mel e fotografias antigas.

WALMOR DARIO SANTOS COLMENERO

São Vicente/SP

in: Microcontos