entrevista
“Os poetas escrevem
para si mesmos.”
Glauco Mattoso
Meu curriculo está no soneto abaixo e nos
outros quattro mil espalhados na rede e em dezenas de livros.
SONETO ASSUMIDO [509]
Mattoso, que nasceu deficiente,
ainda foi currado em plena infancia:
lambeu com nojo o pé; chupou com ansia
o pau; mijo engoliu, salgado e quente.
Escravo dos moleques, se resente
do trauma e se tornou da intolerancia
um nu e cru cantor, mesmo à distancia,
emquanto a luz se apaga em sua lente.
Tortura, humilhação e o que se excreta
são themas que abordou, na mais castiça
e chula das linguagens, o antiestheta.
Merece o que o vaidoso não cobiça:
um titulo que, alem de ser "poeta",
será "da crueldade" por justiça.
P- Quem é
Glauco Mattoso?
G. M: - Elle é meu heteronymo, meu eu lyrico e
meu personagem. É o monstro do meu medico, o bandido do meu mocinho e o sapo do
meu principe. Mas tambem sou eu mesmo, pois nasci com glaucoma e fiquei cego
por causa dessa praga. Por isso ja nem sei quem elle é, pois a cada dia elle
muda, fica mais sabio e mais bruxo, mais sujo e mais puto. O facto é que elle ja
nasceu maldicto e sua poesia pragueja contra a maldicção.
P- Como a
poesia surgiu na sua vida?
G. M: - Justamente como um desabafo, um grito
de revolta, um palavrão xingado por um fodido. Mas ella me chegou por meio da cultura que accumulei como bibliothecario e alumno de lettras na USP, dahi minha primeira phase, mais visual, concretista e zineira ao mesmo tempo, e a phase actual, cega e sonetista.
P- Crê
que a poesia tem que ser um agente de transformação social?
G. M: - Tem que ser um agente de affirmação e
de transformação individual, antes de tudo. Si for fiel à biographia do poeta,
e si o poeta for um fodido, ahi ella será um agente de transformação social,
influindo na vida de outros fodidos e, eventualmente, motivando-os a se affirmarem.
P- Para
quem os poetas escrevem hoje?
G. M: - Hoje, como sempre, escrevem para si
mesmos. Si o cara for um fodido, terá algo a dizer e outros caras, mais ou
menos fodidos, se identificarão com o que elle diz. Si for um privilegiado, provavelmente nem terá vontade de escrever algo que preste, occupado que estará em se divertir.
P- Como
vê os prêmios, concursos, eventos e afins? Acha que contribuem realmente para
melhor literatura e formação de público?
G. M: - Não podemos collocar tudo no mesmo
sacco. Apresentações publicas, como saraus, recitaes e debattes, são optimas
opportunidades de diffundir o gosto pela poesia. Concursos e premios são outros quinhentos. Sempre fui contra taes "escolhas". Desconfio de quem
escolhe e de quem é escolhido. Mesmo que cada um tenha seu merito, duvido da lisura
quando ha fama paga ou midia paga envolvida. O proprio Nobel, que leva fama de ideologico, só tem
tanta repercussão por causa da grana que paga.
P- A
internet interferiu em seu processo de criação? E na divulgação dos poemas?
G. M: - Interferiu, e como! Eu nem seria mais
poeta depois que fiquei cego, mas, graças à informatica, continuei escrevendo
num computador fallante e pude divulgar milhares de poemas no meu site e nos
canaes collectivos, coisa que só com livros autofinanciados seria impracticavel.
P- Como é seu processo criativo? Existe
inspiração?
G. M: - Tem gente que diz que existe mais
transpiração que inspiração. No meu caso, são as duas, uma porque apprendi a battalhar por aquillo que quero, outra porque, sendo bruxo, preciso daquella mãozinha transcendental dos outros maldictos, de quem herdei a veia critica e satirica. Componho quasi em transe, entre a insomnia e o orgasmo, por inspiração, mas tambem raciocino muito, recorro à memoria de tudo que li, sou muito disciplinado na vida intellectual, como na practica.
P- Acha
importante o intercâmbio entre poetas/escritores/leitores?
G. M: - Acho fundamental. O poeta pode escrever
para si mesmo, mas quer publicar para os outros, não para empilhar livro em
casa. Si elle é fiel à propria biographia, fatalmente vae se communicar com quem tenha algo em commum comsigo, ou seja, um leitor que, às vezes, é potencial escriptor. No meu caso, a cegueira me collocou em contacto com diversos typos de leitores e collegas, mas quem mais me estimula é o leitor sadico, que alimenta meu masochismo e, consequentemente, dá gaz ao meu processo
de creação.
P- Qual a
importância da leitura para quem escreve?
G. M: - Si para quem enxerga a leitura é
essencial, calcule para quem perdeu a visão! Tudo que guardo de memoria foi
devido à leitura, e dahi a necessidade de me actualizar, pedindo a alguem que leia para mim, alem do radio e do computador.
P- Como
vê a poesia dos autores atuais?
G. M: - Não dá para
accompanhar tudo, claro, mesmo com a ajuda da informatica e dos amigos, mas consigo distinguir dois typos de poetas contemporaneos:
os que apenas macaqueiam as liberdades poéticas modernistas e posmodernistas, e os que teem maior independencia intellectual e mais curiosidade de pesquisar as technicas de versificação, as differenças estylisticas e thematicas das varias escholas litterarias, sempre no intuito de se affirmarem individualmente
como personagens de si mesmos, como foi o meu caso. Estou em contacto com jovens poetas que se interessam pela metrica e pela rima com o mesmo enthusiasmo dum rockeiro, dum rapper ou dum funkeiro por seus generos de musica. Isso me anima e instiga a continuar produzindo.
P- Diga o
que quiser.
G. M: - Ah, é? Então vou contar o que um desses
jovens leitores me disse. Mas vou fazel-o em soneto, um de meus mais recentes.
Aqui vae:
O ANJO DA GUARDA E O DEMONIO DA POESIA [4026]
Divirto-me bastante quando o leio,
poeta! Me imagino em seu logar,
dispondo-se a lamber pés, a chupar
caralhos, sem escolha, sem asseio...
Sem essa! Nem pensar! Num Deus eu creio,
que é justo e me poupou de ter azar
egual ao seu! Adoro contemplar
mulher gostosa! Macho eu acho feio!
Você, não: cego, está por baixo e pode
se dar por satisfeito si um marmanjo,
que o leu e riu, a sua bocca fode!
Na vida, o que eu puder, de bom, esbanjo:
visão, tesão, dinheiro, isto é, bigode,
cabello e barba... Tenho um sancto... e um anjo!
P- Deixe, se quiser, algum contato (e-mail, site, etc).
G. M: - Fica facil me achar na rede, mas o email continua sendo
glaucomattoso@uol.com.br
e o site http://glaucomattoso.sites.uol.com.br, lembrando que posso me
communicar sozinho pelo computador, desde que o correspondente não
envie archivo annexo, ou de imagem ou som,
que não são decodificaveis pela minha machina.
SONETO VICIOSO [500]
Poema lembra amor,
que lembra carta,
que lembra longe, e
longe lembra mar,
que lembra sal, e sal
lembra dosar,
que lembra mão, e mão
alguém que parta.
Partir lembra fatia e
mesa farta;
fartura lembra sobra,
e sobra dar;
dar lembra Deus, e
Deus lembra adiar,
que lembra carnaval,
que lembra quarta.
A quarta lembra três,
que lembra fé;
fé lembra renascer,
que lembra gema,
a gema lembra bolo, e
este o café.
Café lembra Brasil,
que lembra um lema:
progresso lembra
andar, que lembra pé,
e pé recorda alguém
que faz poema.
CONFESSIONAL [234]
Amar,
amei! Não sei se fui amado,
pois
declarei amor a quem odiara
e
a quem amei jamais mostrei a cara,
de
medo de me ver posto de lado.
Ainda
odeio quem me tem odiado:
devolvo
agora aquilo que declara.
Mas
quem amei não volta, e a dor não sara.
Não sobra nem a
crença no passado.
Palavra
voa, escrito permanece,
garante
o adágio vindo do latim.
Escrito
é que nem ódio, só envelhece.
Se
serve de consolo, seja assim:
Amor
nunca se esquece, é que nem prece.
Tomara,
pois, que alguém reze por mim...
SONETO
OTIMISTA
Ainda
somos bons de futebol.
A
taxa de inflação cai ano a ano.
A
nova inundação não causou dano.
A
meteorologia prevê sol.
O incêndio não chegou até o paiol.
Brasil
vai dar asilo ao rei cubano.
Na
ONU já se fala o castelhano.
Achado
o fugitivo da Interpol.
Notícia desse tipo anima a gente.
"Nem
tudo está perdido”, pensa o cego.
"Se
melhorar, estraga”, acha o vidente.
Mas sou teimoso, e os pontos nunca entrego.
No
escuro, permaneço descontente.
Se outrora tropeçava, hoje escorrego.
GLAUCO
MATTOSO
São
Paulo/SP
Nota dos editores: Respeitamos a
ortografia do autor,
conforme pedido do mesmo.
______________________________________
NOVOS
SLIDE
o instante
por um instante
imobilizou-se
pequena foto
pequeno
fato
ato aprisionado
perplexo
a varar os anos
a estancar o tempo
atento ao tempo
do tempo atrófico
que há muito tempo
deixou
de passar
e a esperança era mais
que sonho, excerto
e ânsia, desejo
de acerto nas coisas
hoje em dia
todas tão fora
de lugar
ERNANI
FRAGA
São Paulo/SP
_____________________________
DE
MADRUGADA
Os
móveis
de
dia
são
corpos
À
noite
alma
das coisas
que
vivem a inutilidade,
libertas
das
sombras parasitas
da
manhã.
LUIZ
ANTÔNIO MARTINS PIMENTA
(1942
– 2004)
Santos/SP
in:
Catedrais
______________________________
MADRIGAL COM INTERVALO CRÍTICO
Olhos de lua refletida em mares...
(Teus olhos me botam assim romântico
ou é a chuva lá fora?)
Olhos lunares,
olhos lunares,
dai-me a pureza
dos vossos mares.
ANDERSON BRAGA HORTA
Brasília/DF
in: Signo – Antologia Metapoética
Thesaurus Editora
_______________________________
ANTIFLOR
Caule
esdrúxulo, gerado
sem
ventre. Crisol de verdes
espadas,
sem punho e gume,
erguidas
do escuro estrume
sem
o orgasmo das sementes:
(grande
mistério o de seres
vivente
por recriado
de
fibras remanescentes!)
-
por que mistério ainda cirzes
a
terra, tão bem cerzida,
com
tuas finas raízes?
-
por quê, sem fonte de amor,
vives
(eterna antivida!)
se
serás sempre antiflor?
MARIA
BRAGA HORTA
(1913 - 1980)
Brasília/DF
in: Caminho de Estrelas
Massao Ohno Editor
__________________________
CASA
faço do silêncio
a morada do ser
não lhe digo
palavras duras
nem amorteço quedas
apenas guardo
a concha
em que abrigo
a solidão dos homens
LUIZ OTÁVIO OLIANI
Lins de Vasconcelos/RJ
in: Espiral
_____________________
O
POETA
Tanto
trabalho numa luta inglória!
Não
vês que nada tens, ó trovador,
para
cantar nos louros da Vitória
o
teu viver?
- Eu viverei de Amor!
Procura
ver nas páginas da História
do
poeta o destino ameaçador...
Pensas,
acaso, na vivente glória
do
teu sofrer?
- Eu viverei de Amor!
ANDERSON
DE ARAÚJO HORTA
(1906 - 1985)
Brasília/DF
in: Invenção do Espanto
Edições Galo Branco
__________________________________
Algo imenso que há em mim vem do mar
– do mistério e da sofreguidão do mar.
Talvez a infinita mudez das rochas,
Ou o grito das ondas quando as possuem.
Talvez a fome dos pássaros
A vagareza dos peixes,
A profundidade de saber-se cinzento
E móvel a cada instante,
O sentimento de saber-se imutável
E eternamente distante
De si mesmo.
BENILSON TONIOLO
Campos do Jordão/SP
_____________________________
AO NATURAL
Não foi fatal
Nem pecado mortal
Foi instinto dual
Foi prazer original
E não fez mal
CARLOS CASSEL
Caçapava do Sul/RS
_______________________
minha mãe reavivava as cores
de antigas pinturas em ladrilhos
pintando por cima do desenho
o que outras cores antes tinham sido
minha saudade guarda
naqueles palimpsestos coloridos
meus olhos vivos acesos na imagem
por onde ia o traço fino do pincel
deslizando suave na paisagem
o verde novo sobre o verde antigo
depois o sol daria o seu realce
acendendo mais as cores renascidas
que sob sua luz ardente
novamente ficariam esmaecidas
onde estão os quadrinhos de ladrilhos
que minha mãe vivia colorindo
sob o sol que ardia na varanda?...
EUNICE MENDES
Santos/SP
in: Paisagem com Pássaro
_____________________________________
DECISÃO
Não quero fazer canções
que falem de tristezas.
Meu objetivo é viver a vida.
Ser a criança que nunca fui.
WALMOR DARIO SANTOS
COLMENERO
São Vicente/SP
in: Poeminhas
__________________________________________
COLTRANIANA
Em meio
ao burburinho funcional
presenteio-me com Coltrane.
Love songs
perfumam a sala
trazem entre acordes cotidianos
a transcendência
perdida.
Mente migra
para etéreos espaços
corpo relaxa
serena idade parece advir.
O jazz aqui jaz...
RICARDO
MAINIERI
Porto
Alegre/RS
_______________________________________
Vou
ficar a tua sombra
Cobrir-me
de verde
Para
esconder
Esta
nudez extrema
Despida
de letras.
Colher
palavras
Retalhos
de verbo
Contar
segredos
Em
versos esquecidos
Ler-me
em silêncio
Eu
dentro de mim.
ZAIRA
CANTARELLI
Porto
Alegre/RS
in:
Presença AGEI
____________________________
INFORMAÇÃO IMPORTANTE
Além
das seções da revista POETIZANDO e dos novos poetas,
você poderá
encontrar na revista impressa:
Frases, Prosa, Biografias, Crônica, Conto
e muita poesia...
UNIDADE: R$ 10,00
VIA CORREIO: R$ 12,00
ASSINATURA ANUAL: R$ 35,00
CONTATO: walmordario@ig.com.br
_____________________________________________________