Revista Poetizando

7.5.12

POETIZANDO Nº 44
(edição de outono)

 

No entardecer da terra
O sopro do longo Outono
Amareleceu o chão.
Um vago vento erra,
Como um sonho mau num sono,
Na lívida solidão.

Soergue as folhas, e pousa
As folhas, e volve, e revolve,
E esvai-se inda outra vez.
Mas a folha não repousa,
E o vento lívido volve
E expira na lividez.

Eu já não sou quem era;
O que eu sonhei, morri-o;
E até do que hoje sou
Amanhã direi, quem dera
Volver a sê-lo!... Mais frio
O vento vago voltou.

FERNANDO PESSOA
in: Cancioneiro
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AUTORES DO MÊS

MARÇO

ELIZABETH BARRETT BROWNING, poetisa inglesa, nasceu em Coxhoe Hall, perto de Durham, a 6 de março de 1806 e faleceu em Florença, a 29 de julho de 1861. Apesar da saúde extremamente fraca, conseguiu dedicar-se à literatura. Em 1846 sua vida teve grande impulso ao casar-se com o poeta Robert Browning, seu eterno amor. Passou a morar na Itália e defender a causa da liberdade política dos italianos. Foi considerada uma das melhores poetisas inglesas.
Algumas obras: Sonetos Traduzidos do Português (1850), Janelas da Casa Guidi (1851), Aurora Leigh (1856), Poemas Antes do Congresso (1860).

SONETO XXVIII

As minhas cartas! Todas elas frio,
Mudo e morto papel! No entanto agora
Lendo-as, entre as mãos trêmulas
o fio da vida eis que retorno hora por hora.

Nesta queria ver-me - era no estio -
como amiga ao seu lado... Nesta implora
Vir e as mãos me tornar... Tão simples! Li-o
E chorei. Nesta diz quanto me adora.

Nesta confiou: sou teu, e empalidece
A tinta no papel, tanto o apertara
Ao meu peito que todo inda estremece!

Mas uma... Ó meu amor, o que me disse
Não digo. Que bem mal me aproveitara,
Se o que então me disseste eu repetisse...

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ABRIL

JOSÉ ALBANO, poeta brasileiro, nasceu em Fortaleza/CE em 12 de abril de 1882 e faleceu em Montauban, França, em 11 de julho de 1923. Poliglota, possuidor de vasta cultura, versejava também em francês, inglês e alemão. Sua obra era composta de grande pureza lingüística e alto rigor formal. Ela foi reunida e editada em 1948 com o nome de Rimas de José Albano. Seus versos consistiam de redondilhas, canções, odes, alegorias, endechas, sonetos e comédias.

PRECE

Bom Jesus, amador das almas puras
Bom Jesus, amador das almas mansas,
De ti vêm as serenas esperanças,
De ti vêm as angélicas doçuras.

Em toda parte vejo que procuras
O pecador ingrato e não descansas,
Para lhe dar as bem-aventuranças
Que os espíritos gozam nas alturas.

A mim, pois, que de mágoa desatino
E, noite e dia, em lágrimas me banho,
Vem abrandar o meu cruel destino,

E terminado este degredo estranho,
Tem compaixão de mim, pastor divino,
Que não falte uma ovelha ao teu rebanho!
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MAIO

ALEKSANDER SERGEIEVITCH PUCHKIN, escritor russo, nasceu em Moscou a 26 de maio de 1799 e faleceu em São Petersburgo a 29 de janeiro de 1837 (datas do calendário antigo). É considerado o pai da literatura russa: poeta, romancista, dramaturgo, contista e ensaísta. Teve grande influência sobre os maiores escritores russos entre eles: Lermontov, Gogol, Tolstoi, Dostoievski. A Gogol, seu amigo, inspirou  os enredos de Almas Mortas e O Inspetor-Geral. Embora se destacasse em todas as áreas que atuou, Puchkin era essencialmente poeta, que segundo Dostoievki, “era o mais nacional e o mais universal dos poetas russos”. Vindo de família nobre russa, tornou-se figura de destaque não só nos meios literários, como na alta sociedade da capital russa. Foi casado com uma das mulheres mais belas da época, foi conduzido a intensa vida mundana, causando aborrecimentos e a sua própria morte em duelo com um membro da guarda real. Na adolescência viveu em ambiente literário, escrevendo seus poemas e obtendo grande sucesso, tendo a influência de Voltaire. Nessa época, preparou os primeiros esboços da novela em versos Ruslan e Ludmila publicada em 1820. Foram escritos poemas também com idéias libertárias. Com a publicação de Ruslan e Ludmila desencadearam ataques violentíssimos das escolas dominantes. Baseado em uma lenda nacional, o poema situa-se em ambiente russo e personagens russos. Com forte influência Byroniana, esceveu O Prisioneiro do Cáucaso, A Fonte de Baktchisarai e Os Ciganos. O primeiro grande romance russo, embora escrito em versos, Evgeni Onegin, é uma obra profundamente realista e nacional, sendo considerada a melhor obra da sua época, painel da sociedade russa de então, verdadeiro marco do romance realista russo do séc. XIX. Publicada em 1831, a tragédia histórica Boris Godunov, teve inspiração de Shakespeare, tendo o seu tema principal as relações entre as classes dominantes e a massa do povo. Pela complexidade de sua trama e impacto, esse drama constitui um dos pontos mais altos da literatura russa. Na década de 30, apesar de sua vida mundana, produz Contos de Belkin, O Festim no Tempo da Peste, Contos de Fadas, O Cavaleiro de Bronze, A Filha do Capitão, A Dama de Espadas. Puchkin, usava em sua poesia expressões e lendas populares, enriquecendo seus versos com a riqueza do idioma russo, o que era inconcebível até então. Foi o primeiro a introduzir na literatura russa a própria Rússia: sua paisagem, seu povo, sua fala, sua alma. Puchkin, como criador, é a principal fonte da grande literatura russa. A sua obra A Filha do Capitão, inspirou Guerra e Paz de Tolstoi. Enquanto que A Dama de Espadas, desencadeou Crime e Castigo de Dostoievski.
Algumas obras: A Aldeia (1819), Ruslan e Ludmila (1820), O Prisioneiro do Cáucaso (1822), Os Ciganos (1827), Poltava (1828), Contos de Belkin (1830), Boris Godunov (1831), Evgeni Onegin (1833), O Festim no Tempo da Peste (1833), Contos de Fadas (1833), O Cavaleiro de Bronze (1833), A Filha do Capitão (1833), A Dama de Espadas (1934).

A FLOR

Acho, entre as folhas de um volume,
Despetalada e murcha flor.
E devaneio estranho assume
Todo meu ser interior.

Abriu-se aonde? Em que primavera?
E muito floresceu? E a mão
Que a acolheu amiga, ou não era.
E pô-la aqui com que intenção?

Em sinal de terna entrevista
Ou de separação fatal?
Ou de excursão, longe de vista?
Ao bosque escuro, à paz rural?

Estarão vivos ele e ela?
E seu recanto, onde a supor?
Ou já morreu o moço e a bela,
Como esta misteriosa flor?

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Folk-Lore

O TEMPO DO SONHO
(Folk-Lore australiano)

No começo a Terra era uma planície nua. Tudo era escuro. Não havia vida nem morte. O sol, a lua e as estrelas dormiam embaixo da terra. Todos os ancestrais eternos também dormiam, até que eles acordaram de sua própria eternidade e saíram à superfície.
Quando os ancestrais eternos se levantaram, vagaram pela terra, às vezes sob a forma de animais – como cangurus, emas ou lagartos -, às vezes com forma humana, às vezes meio animal e meio humano, às vezes meio humano e meio planta. Dois desses seres, autocriados a partir do nada eram os Ungambikula. Vagando pelo mundo, encontraram pessoas feitas pela metade. Tinham sido criadas a partir de animais e plantas, mas não passavam de montes informes, jogados e amontoados perto do local onde poços de água e lagos salgados podiam ser feitos. Essas pessoas estavam todas emboladas, sem membros ou rostos.Com suas grandes facas de pedra, os Ungambikula esculpiram cabeças, corpos, pernas e braços.
Fizeram os rostos, as mãos e os pés. E finalmente os seres humanos foram terminados. Cada homem ou mulher foi feito a partir de uma planta ou animal, e cada pessoa deve fidelidade ao totem do animal ou da planta do qual foram feitos – a ameixeira, a semente do pasto, os pequenos e grandes lagartos, o papagaio, o rato.Quando terminaram seu trabalho sagrado, os ancestrais voltaram a dormir. Alguns voltaram para suas casas subterrâneas, outros se transformaram em rochedos ou árvores.Os caminhos percorridos pelos ancestrais são caminhos sagrados. Em cada lugar por onde o ancestral passou, deixou o traço sagrado de sua presença – um rochedo, um poço, uma árvore.Pois o Tempo do Sonho não está somente no passado, pois é o eterno Agora. Entre cada batida do coração, o Tempo do Sonho pode voltar.
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entrevista

“Todo mundo tem a arte dentro de si.”

Cosme Custódio da Silva


Membro de diversas entidades literárias, autor de três livros e co-autor em cento e quatro oportunidades, detentor de títulos e prêmios. Edita o zine O Garimpo.


P - Quem é Cosme Custódio?


C. C. S. - Fui deixado cair pela cegonha, em Salvador, no dia 27 de setembro de 1954, dias de São Cosme e São Damião, sem ser gêmeo, e aqui vivo assistindo a essa pornochanchada de baixo nível chamada Brasil. Casado, três filhos, dois netos, gosto da família, amigos, ler, escrever, andar, correr, viajar.


P - Como se deu sua formação poética?


C. C. S. - Sou um fazedor de versos autodidata, sem a preocupação de academismos, arcadismos, neo-concretismo e outros ismos.


P – O que te motivou a escrever poesia?


C. C. S. - Fui apresentado aos poetas lá no curso ginasial, com tarefas para serem executadas. Daí tomei gosto, até que veio a necessidade de aproveitar ao máximo a capacidade de criar e tentar compreender o sentido de viver e suas relações, ou não.


P – Para quem os poetas escrevem?


C. C. S. - Primeiro para si mesmos, introspectivos que são. Depois, para os seus pares, males e amores.


P – Como vê os concursos, prêmios e eventos afins?


C. C. S. - Tem muita vigarice no meio, muita gente ganhando dinheiro em cima daqueles que sonham em ganhar um grande concurso e ser guinado à carreira. Até mesmo num concurso como o Prêmio Jabuti tem mecanismos escusos, quando editor, curador, concorrentes e jurados não se entendem. Imagine naqueles de menor expressão!


P – A internet interferiu em seu processo criativo? E na divulgação do trabalho?


C. C. S. - Não. Nem sequer sou um viajante, não obstante compreender que a internet permite uma assimilação fantástica de conhecimento. Divulgo o zine O Garimpo: e-mail - putzgrilla@oi.com.br.


P – Poesia e vida se complementam?


C. C. S. - Complementam-se e se confundem. A vida sem poesia seria Pelé sem Tostão, goiabada sem queijo, feijão sem arroz, Dom Quixote sem Sancho. Poesia não é só o que está escrito. Ali tem som e ritmo, espaço e tempo, fluidez e ruptura, como a vida.


P – A arte é própria do artista? Ou todo mundo é artista?


C. C. S. - Como artista plástico bissexto, acho que o artista já nasce, evolui, enriquece, ganha notoriedade e respeito. Mas num sentido amplo, todo mudo tem a arte dentro de si, pois que ela é subjetiva, de Lina Bo Bardi a Volpi, de Carybé a Di Cavalcanti; das rendeiras do Ceará aos oleiros da Bahia; do Parangolé de Oiticica aos artesãos de Olinda.


P – Acha importante o intercâmbio entre escritores? E seus leitores?


C. C. S. - Sim, mas eles não se topam, são pedantes, egoístas, metidos a besta, semideuses, afetados, pisam em ovos. Os leitores só os encontram em noites de autógrafos, Feiras e Bienais.


P – Qual a diferença entre arte e entretenimento?


C. C. S. - Nem todo entretenimento configura-se em arte, mas toda arte entretém, educa, ensina, faz pensar.


P – A literatura contribui para melhor compreensão do mundo?


C. C. S. - Tomemos como exemplo da Grécia Antiga para os dias de hoje. O quanto nos deu a literatura, apesar do bicho que é ainda o homem! Sem ela não estaríamos aqui.

POEMAS:


AMOR DE AMANHÃ

Que prol terá a vós
Para tanto bem me querer
Pois sou corda de cegos nós
Sem o teu amor merecer

Pensai bem no que ides fazer
Deixai de lado se para o meu cuidar
A verdade dir-te-ei mesmo a lhe doer
E perdoe-me se a ti não sei loar

Sinto o quanto é bom o vosso coração
Longe de minh’alma dele troçar
Quem sabe não esteja co’a razão

Mesmo sem hoje formaremos um par
Amanhã se preciso for, pedirei perdão
E vos desejarei aves do mundo d’amor cantar


FINO TECER

Sentada em pequeno tosco banco
Junto à parede azul mofada
Tece Santinha quieta no canto
Roupa branca pelo uso amarelada

Rama de luz que entra pela janela
E a agulha rápida no tecido entranha
A linha aos poucos se desenovela
Entrelaçando que nem sutil aranha

Da vitrola chuva de música soando
Enfeitando o ambiente de alegria
A criança aos pés seus brincando

Sem interromper com paciência urdia
E o tempo com pressa passando
Querendo a noite fenecer o dia


FRAGILIDADE

Somos todos quixotescos
de atitudes fortuitas
e pensamentos grotescos
cavalgando em rocinantes
pangarés
trôpegos, vacilantes
Degladiamos
contra moinhos sem ventos
imóveis, inúteis
lançando nossas lanças
toscas, tortas
cegas ao vazio.
Somos todos sanchos
de panças vazias
e mentes ocas
de atitudes impotentes
vítimas de nós mesmos

MEU NOME É ANGOLA

Levanto âncoras
Iço velas
Singro águas
E ares
O mar sangra de emoção

Deixarei saudades no porto
Mas, trago-me no coração
Ao encontro do meu amor
Desde outrora
Em versos exposto

Penetrarei Angola
Sem armas, sem dardos
Sem grilhões, sem argolas
Mas, com elos e laços
E ímpetos de amor

PESSOA E EU

Sou uma pessoa só
Que curte Pessoa
Sem os heterônimos
Só ele
Eu sozinho

Seus versos
Soam-me à mente
Ecoam-me o corpo
E, se verdade escondem
Não é o que sinto

Cubro-me com o teu chapéu
Vejo através das tuas lentes
Uso da tua gravata
E, sem bravata
Pito do cachimbo teu
Contaminou-me, Pessoa
Um só em tantos
Mas, somente ele
Singularmente
Entretanto

COSME CUSTÓDIO DA SILVA
Matatu/BA
e-mail: putzgrilla@oi.com.br
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NOVOS


Por mais que doa,
Dôo:
Olhos à tarde distante,
Xingamentos no trânsito,
Horas ao desnecessário.
Dôo a carne à quem me ama,
O tempo ao trabalho mecânico,
Os lábios à palavra vazia,
A mão ao verso incompreendido,
Incompreensível.
Por mais que doa,
Dôo,
Pois tenho fome,
Tenho sede e desmantelo
De cada coisa doada.
E ainda assim
Ao faltar-me o que não mais me pertence
Dôo
Atordoado
A dor de ter doado.

BENILSON TONIOLO
Campos do Jordão/SP
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René Magritte

no alto de um poste
um homem lê um livro de poemas
a paisagem corre
vertiginosa à sua volta

aquela silhueta
imprime ao horizonte
um não reconhecimento da lógica

o homem lê absorto
em confortável estética
como se fios invisíveis
desenhassem suave poltrona

o olho observador
vê uma queda
iminente demonstração
das leis de Isaak Newton
ou seja
a queda como a de uma maçã de uma árvore

não há construções
de toda a filosofia disponível
que sustentem um homem no ar
ou pior
no alto de um poste de eletricidade

para nós que o vemos
em tal posição de perigo
inspira o medo e a inveja

indiferentes ao homem
e o possível dilema alertado
dois corvos
alçam vôo
criando duas manchas
no azul perfeito do céu da tarde

EDSON BUENO DE CAMARGO
Santo André/SP
in: www.umalagartadefogo.blogspot.com
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MILIONÁRIO

Nesta partilha,
Eu entrego tudo
Que tenha investido.

Todo meu ouro.

Mas por favor!
Não me proporcionem
A privação dos sentidos.

A emoção
É o meu maior tesouro.

CARLOS CASSEL
Caçapava do Sul/RS
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GEOMETRIA

A geometria é
a memória
do espaço
codificado.

LUIZ ANTÔNIO MARTINS PIMENTA
(1942 – 2004)
Santos/SP
in: Eminércia
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LUZ ALGUMA

você que ainda pode ver
sabe que o mundo estatelou-se
aos nossos pés neutralizando
os ventos em nome de uma vida certa
de aparências inúteis e que essa é a outra forma
do canhão que eles têm para nos executar

você pode ver: as pessoas agonizam
embora ainda vivam de ilusão
na obscuridade de seus intelectos

em toda parte você as verá perscrutando-se
em toda parte você as verá atodoadas
alimentando fantasias oficiais
e nós, Sarah,
nós veremos que o fundo do poço
não há luz alguma

ERNANI FRAGA
São Paulo/SP
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SOBRE UM TEMA DE NATHANIEL HAWTHORNE
(A Letra Escarlate)

Num céu de azul heráldico descrevem
gloriosas teorias
teus mais puros pensamentos de amor e justiça.
Teces noturnamente no ar,
com aéreos fios,
a sólida estrutura do dia.
Filamentos da alma estendes e-
em vão -
procuras captar no seu obscuro mundo platônico
a Idéia-Luz para os sóis que imaginas.
Na tua noite amarga
pensas um pensamento luminoso.
E com ingênua ilusão
aguardas o dia, que o invista
da carne e do sangue da ação.

ANDERSON BRAGA HORTA
Brasília/DF
in: Cronoscópio
Civilização Brasileira/Pró-Memória
Instituto Nacional do Livro
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o silêncio
pregado na tua boca
se cala
aceso nos teus gestos
me fala
teus olhares
fugidios mares
nudez azul
resvala
teu deserto
adentro minha sede
de naufrágio bebe

EUNICE MENDES
Santos/SP
in: Calendário de Estações - primavera
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LAMENTO DE UM GUITARRISTA DE BLUES

Será que o blues é um pouco de solidão,
é frieza, é exaustão,
saudade de um conto de Machado,
é chorar, é ver-se
e ver um desgraçado
e lamber a lua do infinito?

Será?
Conspirar contra os desígnios da música
e tocar um violão numa estrada poeirenta e deserta.
Trazer de volta a genuína música dos céus.

WALMOR DARIO SANTOS COLMENERO
São Vicente/SP
in: Poemas Bluseiros
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TRAZ em si
os opostos
onde – só –
vive o instante
como história
e até zumbe
não se sabe
se de nojo
ou de glória

Do monturo
ela nasce
tal a flor
que nem sendo
olorosa
vem de lá
com destino
invejável
– lembra a rosa

Como tudo
ela volta
para lá
outra vez
mas não corre
e não luta
nem avisa
quando nasce
quando morre

N
ovamente
essa mosca
ressuscita
insistente
faz que voa
céu de sonho
faz que vive
mar de sono
como a gente.


ANDERSON DE ARAÚJO HORTA
(1906 – 1985)
Brasília/DF
in: Invenção do Espanto
Edições Galo Branco
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PROPORÇÕES

Invejo as cobras
que se recriam
a cada pele,
os moluscos
que mudam de concha
quando crescem.
Minha alma
já não cabe
neste corpo.

MADÔ MARTINS
Santos/SP
in: Diário Ínfimo
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O MÁGICO OUTONO


Outono, árvores despidas,
As folhas dançam no espaço,
Tristes, amarelecidas,
E arrancadas fortemente,
Pelas rajadas do vento;
Espargindo as emoções;
No adeus da nostalgia,
Em silêncio, num lamento!
E entre nuvens tão cinzentas,
Que surgem no grande céu,
Esconde-se o astro rei,
Envolto num denso véu.
Outono é belo em pureza,
É algo como uma prece,
É suave, tem ternura,
É a vida, que adormece,
No meio de tanta acalmia!
É a fase em que a natura,
Descansa como por magia!
Numa divina pintura...

MARIA ROMANA
Faro – Algarve/Portugal
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ASAS PARTIDAS

Dez horas da noite, buzinas e alto-falantes a todo volume anunciam o sábado. Fez calor o dia todo e agora um vento andarilho brinca com os galhos das árvores, suavizando o ambiente.

Celso está sozinho no apartamento, último andar. Seus companheiros são o ronronar do refrigerador e a tevê sintonizada num canal qualquer.

Sábado, bem que poderia descer. Deixar seus pés traçarem um mapa desvairado pelas ruas. No entanto, aceita sua prisão domiciliar, sua solidão.

Do hall vêm ruídos abafados. Como um detetive, encosta o rosto no olho mágico e observa. Um casal jovem se abraça próximo às escadas. As mãos do rapaz procuram os seios da moça, descem mais e se quedam úmidas. A mulher suspira e morde a orelha do rapaz. As cenas se seguem, alheias ao liga-desliga das luzes automáticas. Celso resolve se desligar do quadro e desgruda-se da porta.

Volta a seu mundo e deixa o corpo se recostar no sofá. Fecha os olhos. Em sua tela mental, o cotidiano é exibido em fotogramas, num ritmo de slow-motion. Recorda-se de sua timidez, do contato monossilábico com os vizinhos, com os colegas de emprego. Desvia-se destes pensamentos e se distrai olhando a tevê. Um filme antigo mostra um cow-boy valente, porém solitário. Rejeita a identificação implícita.

Este apartamento é seu mundo. Lembra um refúgio, imune ao ataque das forças ocultas que vão, cotidianamente, apodrecendo as esperanças. Abre uma garrafa de uísque e serve-se de uma dose dupla. Uma sensação quente e boa percorre seu corpo. Renova a dose. Em breve, o volume da garrafa vai descendo, torna-se um reservatório vazio de bebida e de ilusões.

Agora o teto parece girar, é um carrossel. Rodopiam juntas suas angústias, o pôster da banda de rock, os livros de Hermann Hesse, sua solidão. A estas altas horas as pessoas devem estar se amando, dormindo, esquecendo a morte nos bares.

A madrugada vem e lhe beija o corpo quase enregelado. O canal de tevê já saiu do ar. Jaz sepultada no carpete, a garrafa de uísque vazia. Ele rasteja no chão. Rola. Como um animal abre os braços. Asas. Quer voar acima destes prédios, desta madrugada, para receber o novo dia. Domingo.

RICARDO MAINIERI
Porto Alegre/RS
in: www.mainieri.blogspot.com
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